quarta-feira, 25 de novembro de 2009

quando o telefone toca

tem calma, Joana. começava assim aquela mensagem no voicemail numa manhã de Fevereiro que devia ser igual a tantas outras. lembro-me de ter acordado e, como sempre, a primeira coisa que fazia era olhar para o telemóvel. uma mensagem de voz. àquela hora não podia ser nada de bom. a mensagem gravada de um número que eu conhecia bem, o do emprego da minha mãe. que é, por acaso, o de um hospital. àquela hora ela devia estar a entrar em casa, depois de um turno de nove longas horas que devia ter terminado às oito da manhã. mas eram nove e só havia silêncio em casa. e frio, muito frio. é provável que fosse só eu, nervosa e apreensiva, que me sentia arrepiada, um sopro leve na nuca. a voz da minha mãe embargada, a meio caminho entre o querer dizer tudo, gritar, e a tranquilidade que era preciso naquele momento. o pai teve um enfarte e está nos cuidados intensivos. gelei, paralisada. o pai teve um enfarte. o pai teve um enfarte. o pai teve um enfarte. como um eco...

o tempo parou. não sei quanto tempo fiquei ali, parada, com o coração ao pé da boca e os nervos a roçar a pele. primeiro sem reacção, desorientada. creio que foram apenas segundos. ou minutos, não me lembro. liguei para o hospital sem saber se devia chorar. então o pânico era isto, uma espécie de abismo, onde não se sabe bem se se vai cair no momento seguinte ou se alguém nos vai agarrar e puxar para trás. liguei. um acto corajoso ou apenas um brutal medo inflamado. não sei. sabia o que não queria ouvir, mas não podia prever. acho que numa fracção de segundos rezei, sem saber sequer se Alguém me podia ouvir.

lembro-me de durante largas semanas sentir um pavor absoluto do toque do telefone. sobretudo se tocava de noite ou de manhã cedo. as notícias do outro lado. o medo, sempre o medo. até ao dia em que pude respirar de alívio. pudemos todos.

um ano e pouco depois, numa manhã de Maio chuvosa e triste, o chão fugia debaixo dos pés: a avó morreu esta noite. os olhos ainda meio estremunhados, a consciência ainda pouco desperta e novamente um telefonema. a avó morreu esta noite.

não é possível que um telefone que toca fora de horas tenha do outro lado da linha alguém que tenha recebido uma má notícia desta forma. muito menos duas. deve ser por isso que de todas as vezes que não atendo as pessoas não percebem. e é também por isso, tenho a certeza, que mesmo que eu tente explicar, elas nunca irão entender.

3 comentários:

Anónimo disse...

Lá em casa é igual. Sempre que toca o telefone a horas fora do normal, principalmente de manhã bem cedo, todos acordamos sobressaltados a pensar o que terá acontecido e que notícia má vem aí.
E é horrível depois atender e ouvir alguém que ligou só para falar ou dizer qualquer coisa sem grande importância. Por um lado é um alívio, mas por outro apetece bater na pessoa e fazê-la lembrar que "ISTO NÂO SÂO HORAS PARA SE LIGAR!!"
Mas é incrível como as experiências marcantes que temos nos conseguem influenciar num nível tão profundo.

Vanita disse...

Entendo mesmo muito bem! Desde que fui morar para Lisboa, sobretudo desde que terminei a faculdade e comecei a trabalhar, o telefone já tocou vezes demais com novidades das que não queremos ouvir. Tantas que já lhe perdi a conta. Tantas que, durante mais de um ano, o meu coração se sobressaltava sempre que alguém mais próximo me ligava. Agora a coisa parece ter acalmado um pouco, mas o medo... esse, nunca mais se vai embora. Sei disso.

Beijo ;)

Unknown disse...

Sra Jorge, infelizmente as más noticias não têm hora marcada... ser à noite é uma coincidência...
Um dia receberás uma boa noticia à noite e por telemóvel.
Desculpa ter invadido este teu espaço mas a pior noticia que recebi foi por telemóvel, claro, mas a horas decentes.