Eu não sou propriamente adepto do feminismo furioso - Deus me livre -, mas alguma lei da República deveria proibir o que se passa nos pódios da Volta a Portugal em bicicleta. Aquelas duas meninas que afinfam, em perfeita sincronia, uma beijoca nas bochechas do ciclista vencedor no final de cada etapa são uma das mais vergonhosas manifestações de machismo lusitano que por aí se encontram - e, no entanto, a cerimónia permanece imutável de ano para ano, sem que se escute um pio de quem está sempre tão disponível para queimar sutiãs na praça. Ó mulheres portuguesas, onde andam vocês que não vos ouço?
Pensem comigo. Logo à partida, o ciclista é o tipo menos sexy que se consegue encontrar nos desportos do mundo inteiro, talvez com a excepção dos praticantes de sumo. Ganha o mais ridículo dos bronzeados a pedalar horas a fio (nos braços parece um nadador-salvador no fim do Verão e no tronco um turista finlandês acabado de chegar à praia); veste uns calções colantes que ficariam miseravelmente até em Brad Pitt; nos dias de aperto é obrigado a despachar as suas necessidades pelo caminho; e quando salta da bicicleta nem sequer consegue fechar as pernas. Ainda assim, este triste exemplar da espécie humana, a cheirar como nos dispensamos sequer de imaginar, só porque a roda da frente da sua bicicleta se antecipou à concorrência, lá tem de se deixar oscular em palco por duas moças bem parecidas, de sorriso comprado e a disfarçar o embaraço.
O significado daquela encenação é muito simples: o macho-alfa, que se destacou da manada, é agraciado com duas fêmeas em idade reprodutora, para simbolicamente ir rebolar num atrelado, de forma a garantir a continuidade da espécie. Exagero na linguagem? Ponham uma bolinha vermelha no canto da página. Porque aquilo que eu escrevi é exactamente a mensagem (ia dizer subliminar, mas qual subliminar...) que é atirada à cabeça de quem assiste a tão triste celebração.Imagino que o ciclismo seja um dos últimos resquícios de um velho Portugal, onde o macho surge no seu esplendor. Imagino que aquela cerimónia, que nem sequer é exclusiva do rectângulo, se repita há décadas. Mas não percebo como é que alguém, em pleno século XXI, ainda pode aceitar que duas mulheres subam a um palco exclusivamente para beijar um marmanjo que nunca viram, num ritual deprimente de humilhação sexual. Que esse gesto pareça insignificante é apenas mais um sintoma de que continuamos a desvalorizar o papel da mulher e nos conformamos à sua exibição pública como objecto de uso. Um corpo que passa, beija e rapidamente sai de cena.
João Miguel Tavares, DN (14 de Agosto)
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