"Desde há algum tempo, andava desesperada porque o passado se tornava cada vez mais pálido. Do marido tinha apenas a fotografia do passaporte (...). Todos os dias, frente a esta fotografia, entregava-se a uma espécie de exercício espiritual: tentava imaginar o marido de perfil, depois de meio perfil, depois a três quartos. Fazia reviver a linha do seu nariz, do queixo, e verificava diariamente, com temor, que o esboço imaginário apresentava novos pontos discutíveis, onde a memória que desenhava tinha dúvidas. Durante estes exercícios, procurava evocar a pele e a sua cor, e todas as leves alterações da epiderme, as verrugas, as excrescências, as sardas, as pequenas veias. Era difícil, quase impossível. (...) Mas todos estes esforços serviam apenas para demonstrar que a imagem do marido se lhe escapava irrevogavelmente".
Milan Kundera in "O Livro do Riso e do Esquecimento"
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